Brasil : Tempo de crescimento
‘Eis que estou convosco todos os dias’.Mt 28,20
Em um tempo de grandes desafios para todos nós em que perdemos em média mais de três mil vidas por dia, somos chamados em todos os momentos ; a encontrar e contemplar os sinais de Deus em nós e nos outros. Na páscoa celebramos a ressurreição de Cristo, Cristo gerador de vidas !
Essa pandemia marcará nossas vidas. Tantas experiências, desafios e aprendizados. Para quem com sacrífico e insegurança ficou dentro de casa, passou a vivenciar o encanto e o desencanto de quem estar próximo, confrontou-se com as próprias fortalezas e fragilidades. Já aquelas, que por diversos motivos, tiveram que sair e experimentar o medo diário de se contaminar e contaminar os outros por um vírus traiçoeiro restou-lhes as medidas sanitárias e protocolos de segurança : álcool não mãos, as máscaras no rosto, que esconderam nossos sorrisos, nossas expressões de felicidade e tristeza. Mas ativou em nós um jeito próprio de olhar nos olhos uns dos outros.
Houve dias que choramos, que rimos, discutimos, fizemos as pazes e chegamos ao nosso limite. Perdemos a esperança, reconquistamos a mesma, rezamos, ficamos indignados e revoltados, principalmente com aqueles que estão à frente do nosso país.
Um tempo que para mim é crescimento. Tempo de dar valor a todas as chances que tenho na vida, de aprender a não julgar as pessoas pela aparência ou pelo seu passado, tempo de aprender que os seres humanos erram e acertam diariamente. Vivencio a intensidade de estar ao lado de mulheres, homens e crianças, que se encontram em situação de rua. Quanto sofrimento encontrei ! Pessoas realmente esquecidas, vivendo em baixo de marquises, de viadutos, em calçadas, ao lado de lixos, nas praças. Pessoas que perderam tudo : o emprego, a casa e a dignidade. Pessoas que estão ocupando espaços públicos e privados para tentar se proteger de toda forma de discriminação.
Em meio à pandemia fui contratada para trabalhar na Serraria Souza Pinto onde está acontecendo um projeto chamado “Canto da Rua Emergencial” ; voltado para a população em situação de rua. Durantes seis meses fiquei como monitora do Guarda Volume no setor da acolhida. No decorrer dessa jornada passaram por mim muitas histórias. Escolher uma delas para partilhar é difícil, pois cada história ouvida me marcou profundamente e me fez enxergar o quão desigual é a sociedade em que vivemos. Escolhi duas histórias a de Luciano e a história de Christopher para partilhar o impacto que tiveram no meu processo de formação humana.
Conheci o Luciano em uma campanha do agasalho que realizei junto ao movimento juvenil dominicano. Em uma noite fria, encontramos ele dormindo na caçada da região do Barreiro com uma toca na cabeça, uma blusa de frio e dois cobertores, um estendido no chão e outro sobre o seu corpo. Percebemos que seu rosto estava muito inchado e que tinha dificuldade para falar e respirar. Oferecemos a ele um cobertor novo, um pão com manteiga e um copo de chocolate quente. Paramos para conversar e entender um pouco de sua história. Não ficamos por muito tempo, pois havia mais pessoas para encontrarmos.
Fui novamente visitá-lo. Notei que o cobertor que tínhamos dado a ele continuava embrulhado. Perguntei o motivo dele não estar usando, pois estávamos no inverno, noites muito frias. Ele me olhou e disse, que estava guardando para quando fosse para a sua casa. Luciano sonhava em conseguir a sua casinha, comprar os seus remédios e cuidar da sua saúde.
Irmã Solange e eu continuamos a visitar o Luciano. Ele sempre deitado e na mesma posição. Aumentando o vínculo com ele, Luciano nos contou um pouco de sua história, do problema que sofria no coração, da sua filha e o motivo que o levou a estar naquela situação. Ofereçamos ao Luciano uma estadia (Projeto Hospedagens, desenvolvido pelo Canto da rua emergencial). Ele permaneceu pensativo até que decidiu aceitar.
Alguns dias depois levamos ele para conhecer um pouco do projeto e os outros companheiros de estadia. Luciano mal tinha forças para ficar de pé e lhe faltava o ar ao subir as escadas. No dia seguinte, ele foi para a hospedagem. Lá começou a ser acompanhado pelos profissionais contratos pelo projeto, logo se recuperou. Ficou novo !
Um dia, ele passou mal. Foi internado e não resistiu. Luciano aproveitou as hospedagens por quase dois meses. Aprendi muito com ele em tão pouco tempo. Luciano era um homem, que não só sonhava ; dava credibilidade ao seu sonho. Seus olhos verdes brilhavam numa intensidade incrível. Era um homem simples, queria apenas uma casa e um emprego. Direito básico e deveria ser de acesso a todos, mas que lhe fora negado.
Luciano para muitos era só mais um invisível vivendo em péssimas condições. Para mim, ele foi próprio Cristo.
Esse rapaz, jovem, bonito se chama Christopher Dias. Ele tem apenas 21 anos e nasceu em Pernambuco. Eu O conheci através dos trabalhos realizados no “Canto da Rua Emergencial”. Sempre muito bem humorado, educado e bem aparentado. Assim ele chega a Serraria.
Christopher tem uma história de muita superação. Sua mãe lhe teve quando tinha 12 anos e o pai já tinha quase trinta anos, já com 3 filhos. Dois anos após o seu nascimento sua mãe fugiu por medo do companheiro que era bastante agressivo, o deixando aos cuidados do seu pai.
Em menos de um ano seu pai se casou com outra mulher. Quando tinha 12 anos começaram as perguntas sobre sua mãe e sem receber muitas respostas do pai, sempre dizendo que a mãe o tinha abandonado ele quis ir atrás de sua história, mas o pai não aceitou. Perguntando daqui e dali aos 15 anos descobriu que sua mãe residia em Belo Horizonte.
Christopher começou a trabalhar muito cedo como vendedor de passeios aos turistas em Porto de Galinhas. Em uma dessas vendas de passeio ele conheceu um turista vindo de Minas Gerais. Encantado pelo turista e pela ideia de viajar para conhecer sua mãe, Christopher começou a se relacionar com ele. O relacionamento ficou firme e então ele resolveu vir até Minas para visitar seu parceiro que morava em Ponte Nova (interior de Minas) passando alguns dias. Decidiu que largaria tudo em Recife (emprego, estudo e família) para viver com seu companheiro.
No começo Christopher conta que foi maravilhoso era sempre tratado muito bem. Conhecendo melhor seu parceiro Christopher descobriu que ele era traficante, mas por amor a ele e com a intensão de usá-lo como uma ponte para encontrar sua mãe aceitou viver toda aquela situação.
Em 2018 ele e o companheiro foram presos. Christopher pegou 6 meses de prisão, pois era réu primário e seu parceiro assumiu todo o crime. Mesmo com seu parceiro preso o relacionamento não acabou. Christopher continuava a ir à cadeia para visitá-lo. Assim foi durante 8 meses até que descobriu que estava sendo traído. Christopher pegou tudo o que conseguiu e fugiu para Belo Horizonte sem nem mesmo conhecer e passou a morar nas ruas.
Com indicação dos próprios moradores em situação de rua, foi orientado a procurar o albergue Tia Branca para passar as noites. Neste tempo ele conheceu o Canto da rua emergencial e diz :” Graças ao projeto Canto de Rua eu renovo a minha esperança. O canto da rua é uma luz no fim do túnel, um lugar que eu me sinto mais humano, um cidadão”.
Através do projeto ele teve acesso ao computador e conseguiu acesso com a sua família e pode conhecer sua mãe. Dentre tantas perguntas, que passaram em sua cabeça a alegria de conhecer a sua mãe foi o maior sentimento. Sua mãe casou-se e teve outra filha. Com medo de atrapalhar a vida de sua mãe, Christopher decidiu se levantar sozinho.
Christopher está em situação de rua há 8 meses, atualmente habita em uma ocupação no centro de Belo Horizonte. Ele tem sonhos e muitos... Sonho de voltar a estudar, conseguir um emprego e alugar uma casinha. Ele se sente muito orgulhoso das pequenas conquistas já alcançadas. A relação com a mãe permanece saudável.
Luiza Helena, Postulante da Congregação Romana de São Domingos